O conto “Pia-na-mente” trabalha a inquietante questão do “duplo”, o estranho-familiar que nos habita. O “duplo”, para a Psicanálise, está atrelado ao conceito de “Estranho” (unheimlich), os conteúdos inconscientes que deveriam permanecer recalcados, mas que retornam e, assim, causam aos sujeitos experiências sinistras e assustadoras. Ligado ás experiências mais arcaicas (infantis), não é fácil escapar dos sentimentos evocados pelo “duplo” oculto em nós.
O texto “Estranho espelho: entre sem olhar para trás”, que pode ser encontrado na seção de artigos Psicanálise, traz reflexões mais profundas de “O estranho” (FREUD, 1919).
Em segredo, na excitação entre a música e o sentido, um emaranhado de fios enlaçados cresciam na cabeça da menina. Sem cessar, o passarinho de coração pequenino e cabeça confusa cerzia um ninho inventado. Com suas patinhas miúdas, pendurava-se e aprendia a equilibrar-se no finos fios. E sem se perder, ia e vinha dos seus cabelos da menina, sem ninguém perceber.
Era primavera, Rosaura florescia em gracejo, desaflorava, como diziam. Teve certeza de que o passarinho não era um beija-flor, continuava na sua graça de esconder para se mostrar na sua sina de sanhaço cinza. O passarinho se mostrava por intuições: pistas, traços, penas e um bico por vezes escapavam. Ela bem sabia que um rastro azul invadia as outras penas cinzas, em uma marca de ser e não se perder no colorido dos ventos.
Quando vinham jovens apaixonados lhe falar, Rosaura nada dizia, apenas brincava com seus cabelos e costurava eternos sonhos de asas. Gozava seus pecados sem pagar por eles. Verdade era que não sabia pedir, lhe restava somente o repetir. Por pouco responder, e muito querer, costurava nós com as pontas do seu cabelo.
Um dia fez tranças, mas foi só porque o passarinho tinha sumido. Em desespero de encontro, avançou entre os mistérios do cabelo, sentindo-se aliviada quando encontrou o bico entre os labirintos de fios. Um dedo furado foi o preço pela implacável procura. Foi só um susto para a menina, mas um sinal mal lido para outros. Na cidade em que as vozes de dentro se calam, diziam que era metida, avoada e autocentrada: não tirava as mãos do cabelo.
Machucada por dentro, as unhas começavam a crescer mais duras, na razão de ser com direção certa. Para a menina, a loucura estava nas extremidades, mas não era tão fácil dizer essas coisas. Por isso, preferia acreditar que o sanhaço cinza não passava de um “sonhaço” muito estranho. Mas as unhas sempre cresciam. E por isso, menina e pássaro faziam parte da mesma verdade. Entre penas, peles e o sangue, grudavam-se em uma zona incerta de ser.
No infinito da escuridão, jurava que um passarinho piava em seu ouvido. Um piado manso, sutil, como se o sanhaço piamente piasse para ser chocado mais um pouco. Nascido no susto, estava a crescer sem obedecer aos seus instintos de liberdade.
A menina nunca o vira por inteiro, mas tinha um medo danado de seu desejo de menina-pássaro ser alcançado. O conhecia mais na sua qualidade de ser, do que nas distorções da imagem incompleta. Deixava, assim, que o piado do sanhaço pairasse sobre si. Formava engasgo piado para não gastar as palavras.
Parecia mais dócil do que era, menina comportada, bem educada: falava somente o necessário, sem aborrecer os ouvidos já cansados com o excesso das palavras. Entre dito e não-dito, no seu pouco piar, descobriu que no silêncio também se cria música, sem precisar ser canção acabada. A menina desafiou a todos com seu bico e resolveu resguardar-se, não queria que seu piado pousasse em qualquer lugar. Assim como o passarinho, a menina também conhecia a elegância sóbria das reticências. À deriva como as nuvens suspensas, suas memórias pousavam na beleza da vida antes das palavras.
As unhas avançavam, as lixava com voracidade para esconder sua vontade de rasgar. Tempo, tempo, tempo. Sangrava, mas logo cicatrizava. Tempo, tempo, tempo. As cortava, mas pouco adiantava. Eram como lembranças de uma vida nunca vivida. As paredes do quarto da menina bem sabiam: as asas faziam semblante em ruínas que deveriam ser mas não foram. Morria menina no efêmero-engano, no escorregar da realidade que se marca no corpo.
Uma pena saiu das suas costas, as feridas abertas no seu pescoço imprimiam marcas de outra. E nesse desespero desconjuntado, a menina acordou entre penas pretas sobre os lençóis brancos. As palavras escaparam, as penas se espalharam e um piado avançou por todos os silêncios.
Em anseio desaforado, bicando isso ou aquilo entre ligeiros delírios, estranhou o tamanho do seu quarto. Era tempo novo intuído. E o ruído a sua entrega: alguém mais escutava o bocadinho de memória viva que pia na mente?
E as unhas continuavam a crescer.
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