O enigma do amor foi sempre um caldeirão de inquietações. Por que se ama? Por que amamos uma pessoa e não a outra? Por mais que alguns argumentos surjam, não nos satisfazemos totalmente com as respostas encontradas. Há algo misterioso que enlaça o enigma do amor em todos os territórios que são por ele invadidos.
A busca insaciável por um que nos complete é quase inevitável. Somos lançados, não ao acaso, a acreditar que a completude se encontra a cada novo olhar na rua, nos filmes românticos com as suas promessas do amor eterno ou até em uma música que fale sobre um amor exclusivo e excludente. Desde Freud, sabemos que a satisfação é sempre incompleta, tornando o amor uma metáfora de substituição de uma outra coisa que foi apenas encontrada no estado de completude alucinado (relação primordial mamãe e bebê, diriam os psicanalistas). E, para nos consolar da condição de humanos angustiados, buscamos sempre retornar a esse estado de não-faltas, lugar em que somos tudo para o outro que nos completa.
O amor não é paixão, mas ambos se entrelaçam como suplência do horror de viver só. Os apaixonados vivem no desconhecimento do outro e nada para eles é tão irresistível quanto se aproximar da verdade e do absoluto. Mas como ninguém escapa do fim da paixão, as máscaras narcísicas caem. Aí se encontra angústia insuportável dos que ignoram a possibilidade de ser UM (e apenas um só). E o amor? Não por acaso, ao adentrar no campo das fantasias que permeiam as relações amorosas, Jacques Lacan diz: “Amar é dar o que não se tem (a quem não o quer) ”. Diante dessa afirmação que tira nossos pés do chão, resta a cada um lidar com a própria falta e a ânsia de completude, impossível de ser encontrada no outro.
Velocidade, superficialidade e descarte são mais algumas questões a se enfrentar nas relações amorosas do “mundo líquido” de Bauman. As relações se entrelaçam em linhas de papel e, a cada diferença com tempero de frustração descoberta no outro, é vista como um rasgo mais forte na frágil relação. As garantias de não abandono e amor incondicional só tem espaço nas idealizações românticas sobre o amor, como bem explica o psicanalista Cláudio Montoto. A solução encontrada por aqui não é muito diferente de abandonar os velhos sapatos e se entusiasmar na escolha de um mais novo e sem marcas de uso diante de uma vitrine qualquer. E é assim que encontramos a gratificação pela mudança de objeto de amor: a promessa de “melhor” e “mais intenso” precisa ser consumida com voracidade. Não temos tempo a perder: nossa juventude tem dias contados assim como as nossas vidas precisam ser compartilhadas (imediatamente) nas redes sociais.
O delicioso despejo no outro do nosso narcisismo nos leva a viver constantemente no desconhecimento de quem é esse outro. O tempo é o grande inimigo das ilusões: a paixão não dá brecha para o desapontamento. Talvez tão importante quanto as semelhanças, as identificações e instantes mágicos de completude vivenciados a dois, seja a capacidade de cada um tornar as diferenças suportáveis, as frustrações toleráveis e apreender que o outro é, de fato, um outro.
Suportar a des-idealização não é nada fácil, muito menos confortável. O fogo que fascina nossos olhos é o mesmo fogo que queima a nossa pele. Precisa-se de muita coragem para olhar para o outro que não é mais um espelho refletido de quem gostaríamos de ser, mas um outro também com sua solidão e incompletude. O outro que admiramos é, inevitavelmente, falho e tem lá as suas faltas. Quando o encontro amoroso realmente ocorre, chegamos a inescapável dor e delícia de amar o outro como diferente, arte de encontro da face trágica e cômica de duas solidões que buscam construir memórias experienciadas a dois.
Bibliografia Consultada
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund (1856-1939). Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
MONTOTO, Claudio César. Amor. Metáfora eterna. São Paulo: Bluecom, 2012.
MONTOTO, Claudio César. Ou o amor não existe ou é um inevitável equívoco. São Paulo: Preludio Art, 2005.
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