As personagens de um bom livro, assim como as dos palcos de teatro, também possuem um “Inconsciente”, já que tais figuras imaginárias dos autores adquirem vida na obra literária.
As peças teatrais de William Shakespeare (1564-1616) influenciaram bastante Sigmund Freud (1856-1939). A peça de Hamlet, analisada diversas vezes por Freud, parece antecipar as contradições do homem moderno e contemporâneo, como a psicanálise anuncia, devido à intensa vivência dos conflitos psicológicos que constroem um limbo entre realidade e sonho, evidenciadas no mergulho intenso de Hamlet nas oposições: dia e noite, luz e trevas, verdadeiro e falso, assim como razão e loucura.
Não por acaso que Freud na “A Interpretação dos Sonhos” (1900), articula o conflito do príncipe Hamlet com o de Édipo-Rei1 de Sófocles. A consciência de Hamlet se desdobra como em um jogo de espelhos que circundam o conflito nuclear: “ser ou não ser”. O ápice do jogo de dualidades entre realidade e fantasia é a construção de uma “peça-dentro-da-peça”.
O príncipe Hamlet coloca à prova Cláudio, seu tio, ao reproduzir, com auxílio de atores, a cena do assassinato do seu pai. No terceiro ato da peça, Hamlet revela o auge dos paralelismos, duplicidades e contradições, ao defender que o objetivo do teatro é o de “exibir um espelho da natureza”, no momento em que se dirige a um dos atores. Hamlet bem sabia que é no teatro que o recalcado, o estranho, retorna. Assim, a peça Hamlet não deixa de ser um reflexo do próprio autor, já que Shakespeare faz teatro2 refletindo sobre o teatro e a arte de interpretar.
Segundo Patrice Pavis: “O teatro não joga fisicamente com os corpos dos espectadores, manipulados até sentirem vertigem, mas simula perfeitamente as situações psicológicas mais vertiginosas” (2008, p.221). Desse modo, a busca pela ilusão é uma tentativa de atingir o prazer, pois se relaciona com o fato de sabermos que a personagem não é nós, mas de algum modo se acessam os desejos e fantasias infantis recalcadas.
A autora reflete que olhadas pelo viés dos processos oníricos, a interpretação e análise semiótica psicanalítica da arte da vida mostra que é preciso sonhar junto para se compreender (profundamente) imagens das palavras, dos silêncios e esperas intrínsecos a obras artísticas. Aqui, sonho não é sono, nem cinema é só ilusão.
1 – Freud coloca que essas duas grandes obras literárias são exemplos da universalidade das fantasias de incesto e parricídio: O conflito vivenciado por Hamlet tem suas raízes no Édipo-Rei, modificando a forma de direcionamento da pulsão. Enquanto Édipo de fato mata seu pai e casa-se com sua mãe Jocasta devido ao seu destino, Hamlet mantém seus impulsos recalcados. Ainda que o fantasma do pai tenha encarregado o príncipe Hamlet de vingar sua morte, acaba se identificando com o tio que matou o seu pai, se casou sua mãe, tornando-se rei, o que impede o príncipe de vingar a morte do pai.
2 – A história do teatro europeu inicia-se em Atenas, compondo as relações humanas nos cultos, danças e sacrifícios. Do culto ao teatro, foram os festivais rurais dedicados à fertilidade da terra, ritos dionisíacos, que se desdobraram até a tragédia e a comédia. Na Grécia homérica esses festivais sagrados eram a homenagem dos gregos a Dionísio, deus do vinho, do crescimento e da fertilidade. Encarnação da embriaguez e do arrebatamento, Dionísio é um deus bem particular por revelar várias contradições: sensualidade e horror, vida procriadora e destruição letal. (MARGOT BERTHOLD, 2010).
Bibliografia Consultada
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Editora Perspecitiva, 2004.
CESAROTTO, Oscar. Contos Sinistros E.T.A Hoffman/No Olho do Outro. São Paulo: Max Limonad, 1987
CHNAIDERMAN, Mirian. Ensaios de Psicanálise e Semiótica. São Paulo: Escuta, 1989.
FREUD, Sigmund (1856-1939). Obras Psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira/ Sigmund Freud; com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistidos por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Salomão- Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund (1856-1939). Obras Completas. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: editora Perspectiva, 205.
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